MP 1.300/2025 – oportunidades e desafios para o Biogás
Um divisor de águas para o setor elétrico brasileiro
Por Heleno Quevedo - Colunista do Portal Energia e Biogás
Publicada em maio de 2025, a Medida Provisória (MP) 1.300/2025 representa um dos mais significativos conjuntos de alterações no marco legal do setor elétrico brasileiro dos últimos anos. Com força de lei, mas ainda sujeita à aprovação do Congresso Nacional em um prazo determinado, a MP promove uma reestruturação profunda em diversos segmentos, alterando leis fundamentais como a Lei nº 9.074/1995 (concessões), a Lei nº 9.427/1996 (ANEEL e tarifas), a Lei nº 10.848/2004 (comercialização), e até mesmo a recente Lei nº 14.300/2022 (Marco Legal da Geração Distribuída).
Os objetivos centrais da MP parecem mirar a modernização e a maior abertura do mercado de energia. Entre suas principais diretrizes estão a aceleração da liberalização do mercado para todos os consumidores, incluindo os de baixa tensão, que terão acesso ao Ambiente de Contratação Livre (ACL) em fases distintas a partir de 2026 e 2027. A medida também redefine as regras para a autoprodução por equiparação, tornando-as mais restritivas, e estabelece um cronograma para o fim dos descontos nas tarifas de uso do sistema (TUSD/TUST) para energia incentivada em novos contratos no ACL, fixando um prazo limite em dezembro de 2025 para o registro de contratos que ainda farão jus ao benefício. Adicionalmente, a MP introduz a possibilidade de novas modalidades tarifárias (horárias, pré-pagas, multipartes), cria a figura do Supridor de Última Instância (SUI) e ajusta mecanismos de custeio e rateio de encargos, como a forma de alocação dos custos da transição tarifária da Geração Distribuída (GD) via Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Trata-se, portanto, de uma iniciativa abrangente que redesenha as regras do jogo para consumidores, geradores, comercializadores e distribuidoras, exigindo uma análise cuidadosa de seus impactos e das estratégias de adaptação necessárias.
Impactos da MP 1.300/2025 em projetos de UTEs a biogás: um panorama
Nesse cenário de mudanças, como ficam os projetos de geração de energia a partir de Usinas Termelétricas (UTEs) a biogás? A análise dos dispositivos da MP 1300 revela um quadro complexo, com desafios e oportunidades que variam conforme o ambiente de contratação.
No Ambiente de Contratação Livre (ACL), a MP traz tanto a promessa de expansão de mercado, com a futura entrada de consumidores de baixa tensão, quanto a intensificação da concorrência. Contudo, o ponto de maior atenção para os investidores em biogás é, sem dúvida, o fim programado dos descontos nas tarifas de uso (TUSD/TUST) para energia incentivada. A MP estabelece um prazo fatal – 31 de dezembro de 2025 – para o registro e validação de contratos na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) que ainda poderão se beneficiar desses descontos. Para projetos de UTEs a biogás, frequentemente enquadrados como fonte incentivada, a perda desse subsídio representa um desafio significativo à competitividade, exigindo ou uma aceleração na celebração de contratos ou uma reengenharia financeira e operacional para viabilizar os projetos sem esse benefício. As novas regras mais restritivas para a autoprodução por equiparação também limitam um nicho de mercado antes explorado. Em contrapartida, a possibilidade de novas modalidades tarifárias, como as horárias, pode valorizar a despachabilidade inerente às UTEs a biogás, criando oportunidades para modelos de negócio que explorem a flexibilidade da fonte.
No Ambiente de Contratação Regulada (ACR), onde a contratação ocorre via leilões, os impactos da MP parecem ser mais indiretos. A migração de consumidores para o ACL pode reduzir a demanda nos leilões futuros, acirrando a competição por contratos de longo prazo, um cenário que pode afetar UTEs a biogás que buscam segurança nesse ambiente.
Quanto à Geração Distribuída (GD), a MP 1300/2025, ao alterar a Lei 14.300/2022, trouxe uma clarificação importante que entrará em vigor em janeiro de 2026: os custos da transição tarifária não arcados pelos consumidores-geradores serão cobertos pela CDE e rateados entre todos os usuários do sistema. Embora isso defina a fonte de custeio do subsídio temporário, não altera a regra fundamental estabelecida pelo Marco Legal da GD: a cobrança gradual das componentes tarifárias pelo uso da rede sobre a energia compensada. Portanto, o principal desafio econômico para novos projetos de UTEs a biogás na GD permanece a adaptação a essa tarifação progressiva, cujo impacto deve ser cuidadosamente modelado na análise de viabilidade.
Estratégias essenciais para investidores em biogás na era da MP 1.300
Diante deste novo paradigma regulatório, a passividade não é uma opção para quem pretende investir ou já possui projetos de UTEs a biogás. É crucial adotar uma postura proativa e estratégica. Algumas diretrizes se mostram essenciais:
- Primeiramente, no ACL, a urgência é a palavra de ordem. O prazo final de dezembro de 2025 para garantir contratos com desconto na TUSD/TUST exige uma aceleração sem precedentes nas negociações e no registro de PPAs. A viabilidade econômica dos projetos deve ser recalculada, considerando cenários com e sem o subsídio, para fundamentar decisões e ajustar expectativas de retorno. Além disso, é preciso desenvolver estratégias para posicionar a energia de biogás competitivamente mesmo sem o desconto, enfatizando seus atributos únicos, como a despachabilidade e os benefícios ambientais.
- Em segundo lugar, a adaptação aos novos modelos de mercado e tarifas é fundamental. A flexibilidade das UTEs a biogás pode ser um trunfo em cenários de tarifas horárias, permitindo a otimização da geração para os períodos de maior preço. Modelos de negócio que capturem o valor dessa flexibilidade devem ser priorizados. Simultaneamente, é necessário monitorar de perto as novas dinâmicas introduzidas pelo SUI e pelas regras de rateio de custos, incorporando-as à análise de risco.
- Terceiro, a mitigação do risco na autoprodução passa por uma reavaliação criteriosa dos potenciais parceiros, focando naqueles que atendem aos novos e mais exigentes requisitos de demanda. Para projetos onde a autoprodução era central, a exploração de alternativas, como a venda direta no ACL ou a participação em leilões, torna-se indispensável.
- Quarto, no que tange à Geração Distribuída, a estratégia deve focar na análise financeira detalhada. A MP 1300 clarificou como os custos da transição serão cobertos (via CDE), mas manteve intactas as regras de cobrança gradual pelo uso da rede, previstas na Lei 14.300/2022. O foco da diligência, portanto, desloca-se da incerteza regulatória para a modelagem precisa do impacto financeiro dessas tarifas progressivas sobre a rentabilidade dos projetos de UTEs a biogás na GD.
Finalmente, a diversificação e o acompanhamento contínuo são vitais. Explorar receitas adicionais, como a venda de biometano, créditos de carbono ou serviços de tratamento de resíduos, pode fortalecer a robustez financeira dos projetos. Além disso, como a MP 1300 ainda tramitará no Congresso e muitas de suas disposições necessitarão de regulamentação pela ANEEL, manter-se atualizado sobre os desdobramentos legislativos e regulatórios é crucial para ajustar as estratégias dinamicamente.
Competitividade do Biogás vs. Fontes Intermitentes (Eólica e Solar) sob a MP 1.300
Uma questão crucial para os investidores é como a UTE a biogás se posiciona competitivamente frente às fontes intermitentes, como eólica e solar, no cenário desenhado pela MP 1300/2025. A resposta não é simples e envolve uma análise multifacetada.
O fim programado dos descontos na TUSD/TUST para novos contratos de energia incentivada no ACL, a partir de 2026, nivela parcialmente o campo de jogo entre essas fontes, que frequentemente se beneficiavam desse subsídio. Embora todas percam esse atrativo para novos projetos, a dependência relativa desse benefício pode variar, impactando diferentemente a viabilidade de cada tecnologia sem ele. Projetos que já contavam com uma estrutura de custos mais enxuta ou que conseguiam negociar preços de energia mais elevados podem sentir menos o impacto.
Entretanto, a MP 1300 introduz elementos que podem favorecer o biogás. A possibilidade de implementação de tarifas horárias (prevista na alteração do Art. 3º da Lei 9.427/1996) é um diferencial significativo. UTEs a biogás, por serem termelétricas, possuem despachabilidade – a capacidade de gerar energia sob demanda, independentemente das condições climáticas. Fontes intermitentes como solar e eólica, por outro lado, geram apenas quando há sol ou vento, respectivamente (a menos que acopladas a sistemas de armazenamento, que encarecem o projeto). Em um regime de tarifas horárias, a capacidade de gerar energia nos momentos de pico de demanda e, consequentemente, de preços mais altos, confere uma vantagem competitiva intrínseca ao biogás. Essa flexibilidade operativa tende a ser cada vez mais valorizada à medida que a matriz elétrica incorpora maiores volumes de geração intermitente, necessitando de fontes firmes para garantir a estabilidade e a segurança do suprimento.
Na Geração Distribuída, a manutenção das regras de transição tarifária da Lei 14.300/2022, com a cobrança gradual pelo uso da rede, afeta todas as fontes. A competitividade relativa dependerá mais das estruturas de custo (CAPEX e OPEX) de cada tecnologia e da capacidade de otimizar a geração e o consumo no local para minimizar a energia injetada e compensada sob as novas regras. O biogás, com um perfil de geração potencialmente mais constante ao longo do dia (dependendo do suprimento de substrato), pode ter vantagens em certos perfis de consumo em comparação com a solar fotovoltaica, cuja geração se concentra nas horas de sol.
Em suma, enquanto a perda do desconto na TUSD/TUST é um desafio comum, a valorização implícita da despachabilidade através de novas estruturas tarifárias e a necessidade crescente de flexibilidade no sistema elétrico podem conferir às UTEs a biogás uma vantagem competitiva renovada frente às fontes intermitentes no cenário pós-MP 1300, especialmente no mercado livre. A viabilidade, contudo, dependerá da gestão eficiente dos custos, da garantia de suprimento de biomassa/biogás e da capacidade de estruturar modelos de negócio que capturem o valor desses atributos.
Perspectivas de mercado para o biogás na regulamentação da MP 1300: um futuro desafiador, mas promissor?
Considerando o conjunto de alterações promovidas pela MP 1300/2025, qual é, afinal, a perspectiva de mercado para a geração de energia elétrica a partir do biogás? O cenário que se desenha é, inegavelmente, mais complexo e exigente, mas não necessariamente desfavorável. As perspectivas são mistas e dependerão crucialmente da capacidade de adaptação e inovação dos agentes do setor.
Por um lado, a perda do subsídio via desconto na TUSD/TUST para novos projetos no ACL representa um obstáculo real, que demandará maior eficiência e competitividade intrínseca dos empreendimentos. A intensificação da concorrência, tanto no ACL quanto potencialmente no ACR, também pressionará as margens. As regras mais estritas para autoprodução por equiparação fecham uma porta para determinados modelos de negócio.
Por outro lado, a MP 1300 abre novas avenidas e reforça atributos valiosos do biogás. A expansão do mercado livre cria um universo maior de potenciais clientes. Mais importante, a sinalização para novas modalidades tarifárias e a crescente necessidade de flexibilidade e segurança no sistema elétrico, diante da expansão das fontes intermitentes, colocam a despachabilidade do biogás em uma posição estratégica. A capacidade de gerar energia firme, nos momentos de maior necessidade e valor, tende a ser um diferencial cada vez mais reconhecido e remunerado, seja através de tarifas horárias ou outros mecanismos de mercado que venham a ser implementados.
Além disso, o biogás carrega consigo benefícios socioambientais relevantes – como a gestão de resíduos orgânicos, a redução de emissões de metano e o desenvolvimento de cadeias produtivas locais, especialmente no agronegócio – que podem agregar valor aos projetos e alinhá-los a políticas públicas de sustentabilidade e economia circular. A possibilidade de diversificação, com a produção de biometano para outros usos além da geração elétrica, também fortalece a resiliência dos empreendimentos.
Portanto, embora o caminho exija maior rigor na gestão de custos, na estruturação financeira e na estratégia comercial, as perspectivas para o biogás sob a MP 1300 podem ser consideradas cautelosamente otimistas. O sucesso não virá mais atrelado a subsídios diretos na tarifa de energia, mas sim da capacidade de explorar a flexibilidade operativa, de integrar-se a cadeias de valor sustentáveis e de oferecer soluções energéticas confiáveis e competitivas em um mercado em transformação. O biogás tem potencial para se consolidar não apenas como uma fonte renovável, mas como um pilar de flexibilidade e sustentabilidade no novo cenário elétrico brasileiro que a MP 1300 começa a delinear.
Acesse a Medido Provisória 1.300/2025: Diário Oficial da União (21/05/2025)
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A coluna Biogás em Pauta aborda diferentes temáticas relacionadas com o processo de produção de biogás, destacando a relação com fatores ambientais, sociais, econômicos e corporativos.
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Autor: Heleno Quevedo
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